Vinte e cinco porcento das crianças, quando diagnosticadas com diabetes mellitus, estão em cetoacidose, sendo que 15% destas crianças apresentam um quadro grave. Em pacientes sabidamente diabéticos, incluindo adultos e crianças, a cetoacidose diabética ocorre em 0,2 a 8,0% dos pacientes por ano.
A cetoacidose diabética resulta da deficiência de insulina e aumento dos níveis circulantes de hormônios contrarreguladores, como catecolaminas, glucagon, cortisol e hormônio do crescimento. Associa-se à instalação de um estado catabólico, com produção aumentada de glicose (via glicogenólise e gliconeogênese) e diminuição do uso de glicose pelos tecidos periféricos, resultando em hiperglicemia, hiperosmolaridade e aumento da lipólise e cetogênese, o que causa cetonemia e acidose metabólica.
Diabetes Mellitus (DM) tipo 1
O diabetes mellitus tipo 1 é uma doença autoimune comum na infância e adolescência: 1,7 casos em cada 1.000 crianças. O Brasil é o terceiro país do mundo em crianças diabéticas tipo 1 menores de 15 anos, e nota-se um aumento da doença, em especial, em crianças menores de 5 anos.
A patologia do diabetes mellitus tipo 1 envolve a destruição progressiva das células ß do pâncreas, levando a uma deficiência de insulina e a alterações daí resultantes. O quadro de hiperglicemia associada a um aumento na produção de corpos cetônicos é conhecido como cetoacidose diabética (CAD).
A hiperglicemia leva à glicosúria e à desidratação, enquanto que a produção excessiva de corpos cetônicos agrava a acidose metabólica decorrente da desidratação. A cetoacidose diabética, se não tratada adequadamente, pode levar ao coma e à morte.
Cetoacidose Diabética (CAD)
A CAD se deve ao estado de insulinopenia grave. Pode decorrer da falência das células pancreáticas ou da falha na administração exógena da insulina, ou ainda da ineficácia de ação da insulina circulante devido ao antagonismo exercido por hormônios contrarreguladores, que promovem gliconeogênese e glicogenólise, além de limitar a utilização de glicose pelos tecidos periféricos, em situações de estresse metabólico, como na sepse, por exemplo.
A hiperglicemia gerada promove diurese osmótica e subsequente desidratação e perda de eletrólitos pela urina, com hipoperfusão tissular e redução da taxa de filtração glomerular. Paralelamente, há elevação dos hormônios contrarreguladores, que, não contrapostos pela insulina, promovem proteólise com gliconeogênese, glicogenólise, redução da utilização periférica de glicose e lipólise. Os três primeiros contribuem para o aumento da glicemia, enquanto o último viabiliza a produção de ácidos graxos livres e de corpos cetônicos (cetogênese) – acetoacetato e β-hidroxibutirato. Esses cetoácidos consomem o sistema tampão de bases do organismo e causam acidose metabólica. A acidemia lática proporcionada pela desidratação e hipoperfusão tissular agrava a acidose metabólica. Desidratação progressiva (por diurese osmótica e vômitos), acidose metabólica, distúrbios eletrolíticos e hiperosmolaridade estimulam ainda mais a liberação dos hormônios contrarreguladores do estresse, que atuam perpetuando o quadro e criando um ciclo vicioso, só quebrado quando o tratamento adequado é instaurado.
De acordo com a intensidade, pode-se classificar a CAD em:
- Leve: pH de 7,3 a 7,2 ou bicarbonato < 15 mmol/L
- Moderada: pH de 7,2 a 7,1; bicarbonato < 10 mmol/L
- Grave: pH menor que 7,1; bicarbonato < 5 mmol/L
A CAD surge com a descompensação do DM, caracterizado pela poliúria, polidipsia e emagrecimento, que evolui com desidratação, náuseas, vômitos, hiperventilação (respiração de Kussmaul) e hálito cetônico. Podem ser observados também dor abdominal (simulando abdome agudo), anorexia progressiva, letargia, alteração da consciência e síndrome febril associada ou não a infecção.
Exames laboratoriais e monitoramento clínico
Glicemia (capilar e sérica), Na, K, Ca, P, Cl, Mg, ureia, creatinina, hemograma, gasometria (venosa ou arterial), lactato, Urina I (glicosúria e cetonúria). Se houver suspeita de infecção, alterações cardíacas (ECG) e ou neurológicas (avaliar Escala de Glasgow), solicitar os exames pertinentes de acordo com o quadro clínico.
Frequência de repetição dos exames:
- Monitorização rigorosa dos sinais vitais (FC, FR, PA) inicial de 1 em 1 hora
- Observação neurológica: escala de coma de Glasgow e sinais de edema cerebral (cefaleia, bradicardia, vômitos, redução do nível de consciência ou sinais focais, aumento da PA, redução da saturação de oxigênio) de 1 em 1 hora
- Glicemia capilar: de 1 em 1 hora até compensação metabólica.
- Na, K, Cl: de 2 em 2 horas.
- Gasometria venosa: de 2 em 2 horas até pH > 7,3 e HCO3 >15.
- P e Ca: de 4 em 4 horas. Caso haja necessidade de reposição, fazer a dosagem a cada 2 horas.
Observação: se P de entrada < 2.0, repetir a cada 2 horas
Tratamento
O objetivo da terapêutica é o de corrigir a desidratação e reverter a cetose, corrigir a acidose, restabelecer a normalidade da glicemia, evitar complicações, identificar e tratar a causa precipitante e prevenir novos episódios de CAD.Os tratamentos indicados são:
- Terapia Hidroeletrolítica
- Insulinoterapia
- Reposição de potássio
- Reposição de fosfato
- Acidose
- Reposição oral de fluidos
Complicações
As complicações da CAD mais temidas por suas altas mortalidades são edema cerebral, hiper ou hipocalemia, hipoglicemia, trombose, sepse, infecções e pneumonias aspirativas.
O edema cerebral é o maior responsável pela mortalidade (57 a 87%). A importância do diagnóstico precoce do edema cerebral se deve ao fato de este ter início súbito e progressão rápida, com a melhora dependendo da pronta redução da pressão intracraniana. Não é fácil reconhecer sua sintomatologia inicial, além de a escala de coma de Glasgow não ser útil para este fim, uma vez que ela não leva em conta cefaleia, vômitos, bradicardia e outros sintomas do edema cerebral.
Os fatores de risco identificados para o edema cerebral são: baixa idade, duração e gravidade dos sintomas antes do tratamento, ausência do aumento do sódio durante o tratamento, baixos níveis de pCO2, altos níveis de uremia e tratamento com bicarbonato.
Curso :: Emergência Pediátricas
O curso Emergências Pediátricas, do Multiplica PP, tem como objetivo capacitar os profissionais da saúde e atualizá-los sobre os conceitos de avaliação sistemática do paciente pediátrico de emergência, algoritmos de tratamento de suporte avançado de vida, ressuscitação efetiva, ventilação mecânica, reconhecimento de diferentes situações de emergência em PCR e RCP.
Ao final do curso, o aluno estará apto a atuar com segurança em situações de urgência e emergência na pediatria.
Texto aprovado pelo coordenador do curso Emergências Pediátricas – dr. Eduardo Gubert
Referências bibliográficas:
Cetoacidose diabética em crianças e adolescentes – Bruna de Oliveira Melim Aburjeli, Daniela Tasca Diniz, Danielle Cunha Martins, Felipe Gomes Machado, Flávia Gontijo, Frederico Milagres de Oliveira, Gabriela Maciel Campolina Cardoso, Hugo Silva Assis Moreira, Júlia Fonseca de Morais Caporali, Cristiane de Freitas Cunha – Faculdade de Medicina da UFMG – Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais – Rev Med Minas Gerais 2009; 19
Cetoacidose diabética em crianças: revisão da fisiopatologia e tratamento com o uso do “método de duas soluções salinas” – Paulo Ferrez Collett-Solberg – J Pediatr (Rio J) 2001;77(1):9-16
CETOACIDOSE DIABÉTICA NA INFÂNCIA – Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira | Data do documento: 2021 – portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br
Abordagem da cetoacidose diabética na infância e adolescência – Karina de Ferran, Isla Aguiar Paiva – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Revista de Pediatria SOPERJ – 2017 http://revistadepediatriasoperj.org.br/detalhe_artigo.asp?id=1035
Manejo da Cetoacidose Diabética na Infância – Universidade Federal do Triângulo Mineiro – Hospital de Clínicas – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – 2019 https://www.gov.br/ebserh/pt-br/hospitais-universitarios/regiao-sudeste/hc-uftm/documentos/protocolos-clinicos/cetoacidose_diabetica_versao_final.pdf