Trauma de abdômen tem uma grande ocorrência na Urgência e Emergência pediátrica. E a avaliação da criança acidentada com foco sobre o trauma abdominal é uma parcela significativa da prática da cirurgia pediátrica. Entender os sinais do trauma, como o corpo de uma criança reage a tal situação e, principalmente, diagnosticar e diferenciar os tipos de trauma contribuem para uma melhor recuperação e colabora para o baixo índice de complicações.
Entendendo o Cenário do Trauma Abdominal na Pediatria
O trauma pediátrico difere do trauma adulto por mecanismos, padrões de lesão, anatomia e efeitos de longo prazo sobre o crescimento e desenvolvimento.
As crianças são mais suscetíveis a lesões contundentes do que os adultos. Isso é explicado pelo tamanho corporal com menor diâmetro anteroposterior que permite uma maior distribuição de lesões. Assim, muitas vezes as crianças sofrem múltiplas lesões traumáticas em várias regiões. Outro motivo é que as vísceras abdominais maciças infantis são proporcionalmente maiores, existe menos gordura abdominal e uma musculatura mais fraca tornando o abdômen uma área frágil. O fígado e o baço são os órgãos sólidos mais comumente lesionados.
Certos mecanismos de lesão são mais comuns em crianças. Bebês e crianças pequenas são propensos a sofrer lesões por colisões de veículos – responsável por mais de 50% dos traumas abdominais pediátricos; afogamento, asfixia, queimaduras, quedas e abuso. Crianças em idade escolar são suscetíveis a lesões por colisões de veículos, atropelamento, colisão de bicicleta, quedas e lesões por arma de fogo. Os adolescentes estão em risco de lesões por colisões de veículos, arma de fogo, quedas e lesões intencionais.
Avaliação Inicial do Trauma
A investigação do trauma abdominal tem início na avaliação primária, respeitando-se a sequência do ABCDE (vias aéreas, respiração, circulação, nível de consciência e exposição) visando à estabilização do paciente e tratamento das lesões ameaçadoras à vida. É importante estar atento a crianças que estejam em instabilidade hemodinâmica, pois devem receber transfusão sanguínea o mais breve possível. Caso não haja disponibilidade de sangue no momento, é possível a infusão de cristaloides. Nessa fase, a presença de choque de origem não explicada pode ser o indicador de hemorragia. Nesse caso, o abdome deve ser exposto em busca de escoriações ou de ferimentos penetrantes. Sinais como marcas de pneus, guidão de bicicleta, sinal de cinto de segurança ou de abrasões que podem sugerir um risco de trauma abdominal aumentado.
Na ausência de alterações à avaliação primária, deve-se prosseguir com a avaliação secundária, quando o abdome será inspecionado, auscultado, palpado e percutido. A estabilidade da pelve é outro ponto que deve ser bem avaliado. Lembrando que o exame físico inalterado não exclui a possibilidade de lesão intra-abdominal.
Em um paciente com instabilidade profunda ou peritonite, exige a realização da laparotomia de emergência como medida inicial de diagnóstico e terapêutica. O paciente hemodinamicamente estável permite uma abordagem mais comedida na avaliação das lesões abdominais que, além do exame físico, permitem a realização de exames laboratoriais e de imagem.
Trauma Abdominal Fechado
A principal causa dos traumas abdominais fechado são as colisões com veículos. As principais consequências do trauma fechado são as injúrias esplênicas, contribuindo para mais de 45% das injúrias viscerais. Os achados do exame físico no trauma fechado incluem equimose, abrasões, lacerações, sensibilidade abdominal ou distensão abdominal.
A principal consequência imediata de uma lesão esplênica é a hemorragia na cavidade peritoneal. O volume do sangramento varia de pequeno a maciço, dependendo da natureza e do grau da lesão. Muitas lacerações pequenas, particularmente em crianças, param de sangrar espontaneamente. As lesões maiores sangram abundantemente, muitas vezes causando choque hemorrágico. Nesses casos, a conduta imediata é a intervenção cirúrgica.
Nos pacientes hemodinamicamente estáveis é vital que eles sejam observados cuidadosamente, e o manejo de rotina inclui repouso, mensurações seriadas de hematócrito e exames físicos seriados. Pacientes que se apresentam clinicamente estáveis, mas com exames laboratoriais indicativos de lesão intra-abdominal (hematócrito <30%, lactato elevado, acidose, hematúria microscópica) devem ser melhor avaliados por meio de TC de abdome com contraste (se não houver contraindicação). Se não forem evidenciadas lesões intra-abdominais, o paciente também pode ser submetido a um período de observação com exame físico e aferição de sinais vitais seriados.
Um achado muitas vezes sutil, é o sinal do cinto de segurança. Pacientes com um sinal de cinto de segurança correm maior risco de lesão intra-abdominal, particularmente lesão de víscera oca. Outros ferimentos associados são fraturas e/ou lesões de coluna.
Trauma Abdominal Aberto
Os traumatismos abertos são subdivididos em penetrantes e não penetrantes na cavidade abdominal.
O trauma penetrante representa cerca de 15% dos traumas abdominais e são representados por tiros e facadas. Mais de 90% dos tiros ocorrem em crianças com 12 anos ou mais. Ferimentos por arma de fogo normalmente causam lesões intra-abdominais adicionais em decorrência da trajetória do projétil. Já os ferimentos por arma branca normalmente causam lesões nas estruturas abdominais adjacentes ao ferimento de origem. Qualquer paciente que tenha sido vítima de ferimentos penetrantes, deve ser considerado portador de lesão vascular, de víscera abdominal ou pélvica até que se prove o contrário.
As estruturas mais comumente lesadas no trauma penetrante são o trato gastrointestinal, fígado, vasculatura abdominal, rim e baço. As vísceras parenquimatosas lesadas ocasionam muita perda sanguínea, provocando hemorragias importantes, enquanto que as vísceras ocas lesadas causam liberação de secreções digestivas como suco gástrico ou intestinal, bile, fezes e urina, podendo levar à peritonite.
Nos traumas penetrantes, as indicações de cirurgia são: todos os ferimentos por arma de fogo em que haja suspeita de violação do peritônio, todos os ferimentos por arma branca, associados com evisceração e na vigência de sangue no estômago, urina ou reto; sinais físicos de choque ou peritonite, evidência radiológica de ar intra ou retroperitoneal, fluido da lavagem peritoneal contendo bile, bactéria, fezes ou mais de 500 leucócitos por ml de urina.
Texto aprovado pela coordenadora do Multiplica PP – dra. Giovana Camargo.
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